sábado, 23 de julho de 2011

Por que a arte não é um instrumento?


 Tatiana Fernández, frame de mutatis mutandis, animação

Instrumento de inclusão social, instrumento de reflexão moral, instrumento de glorificação, instrumento de comunicação, instrumento pedagógico?
Definir instrumento no que ele é e não é: ferramenta para conseguir um propósito, meio ou estrutura que serve a, dá sustento a. Instrumento não é ele mesmo o fim, ninguém faz instrumentos sem propósitos definidos se estes vão ser instrumentos de alguma coisa.
Definir arte no que ela é e não é: impossível definir a arte em termos do que ela é porque não acabaríamos nunca, mas podemos dizer que não é instrumento porque a experiência da arte não se situa no objeto, nem no sujeito, mas no encontro entre os dois, é um tipo de experiência em que sujeito e objeto se completam.
O problema está então no conceito de arte. Tudo depende do corpo de suposições do qual partimos. Se pensarmos que arte é a qualidade material do objeto podemos deduzir que o “objeto arte” pode-nos servir para um propósito maior que seja útil ao sujeito de “alguma” maneira. Assim foi compreendida durante séculos na sociedade ocidental cristã onde as imagens representavam a palavra divina. Se pensarmos que a arte é expressão de sentimentos podemos deduzir que o “objeto arte” pode nos servir como instrumento de expressão. Ainda assim separamos objeto e sujeito da arte.
Mas se pensarmos que a arte acontece no encontro entre o ser e mundo, entre sujeito e objeto e que é, portanto uma experiência única, poderemos compreender que a arte não é um instrumento, mas um encontro.
A arte pode ser logicamente e muitas vezes foi instrumento de poder, instrumento de comunicação, instrumento pedagógico, etc. Todas nossas leituras da arte podem existir juntas, não há limites, podemos fazer dela o que quisermos, podemos usar uma obra de Picasso para analisar as guerras mundiais ou para criar um padrão de tecido para a moda. Podemos usar o objeto da arte, mas não a seu acontecimento.
Pintura não é arte, desenho não é arte, escultura não é arte, gravura não é arte, performance não é arte, instalação não é arte, vídeo-intervenção não é arte.
Pintura é só pintura, desenho é só desenho e tudo mais...
Arte é um encontro incorporal: o tempo e o exprimível, o vazio e o lugar. A arte acontece no devir, no caminho, no passo, na procura, no encontro, na aparição, no fluir.
Arte na escola não pode ser instrumento pedagógico, porque então não estamos fazendo arte, estamos fazendo outra coisa com os conhecimentos da arte, que não é fazer arte.  O propósito da arte na escola é a arte.
Não vamos pensar na arte como objeto novamente, só pintar não é arte.

domingo, 10 de julho de 2011

Por que arte contemporânea na escola?


A arte é sempre contemporânea porque situa a experiência estética no contexto da vida

 
Tatiana Fernández. Almodóvar e Maná. fotograma da animação

Texto dedicado aos meus alunos e alunas da FADM



A experiência da arte carrega a intensidade de uma conexão que pode ir além do próprio tempo e espaço.  Não importa com que obra de arte, nem em que tempo ou lugar, sempre existe a possibilidade de uma conexão intensa, um encontro estético entre sujeito e objeto, um reconhecimento a primeira vista. Uma intensidade que vai explodir no corpo. Uma experiência perturbadora onde a vontade de compreender faz o coração bater rápidamente. 
Nestes encontros de experiência estética estão as bases da linguagem. Todo o fervor que temos pelo que acreditamos passa pela experiência do sensível na nossa estrutura. Por isso, só sabemos aquilo em que acreditamos e acreditamos naquilo que experimentamos na pele, o lugar onde nosso interior toca o mundo e é tocado por ele (Jean Luc Nancy, Corpus,1992). A nossa pele é a nossa dobra do mundo, o lugar onde o mundo se dobra dentro de si e se torna eu e onde eu me torno o mundo. 
A compreensão do mundo se constrói através da linguagem que se articula na experiência do corpo vivo. Mas a experiência da vida e do corpo é negada nos ambientes escolares. O mundo parece acontecer fora dos muros. Se não fosse porque os estudantes constroem a sua vida social na escola, seria um campo de extermínio da subjetividade. Dentro do sistema educacional atual não há lugar para a experiência da vida que não seja a da vida no sistema.
Como sair da inércia e a impotência? 

Ser capaz de articular a linguagem do mundo, se pensar pensando, se questionar sobre o próprio pensar e construir significado é uma capacidade propriamente humana. A arte é uma forma de se pensar pensando, é um processo de busca por uma maior compreensão de se saber vivo. Articular a linguagem de uma forma intensa é uma forma de experiência que marca o nosso corpo pela sua intensidade perturbadora, seja esta de beleza ou de profunda crueldade. Sabemos aquilo que a vida nos ensina porque passa através do nosso corpo, dos nossos sonhos, dos nossos desejos. Há arte em todo conhecimento que nasce de uma interação intensa com a vida (Dewey,Art as Experience, 1934). A arte não é a vida, mas é sua forma expandida. Para que a escola se torne um espaço de expansão humana deve se tornar um espaço de re-significação constante, um lugar de poesia e imaginação (Maxine Greene, Releasing, the Imagination, 1995).

Humanidade expandida
Há muito mais entre a arte contemporânea e a aprendizagem do que há entre o atual sistema de educação e a vida. Estes sistemas em todas partes do mundo limitam o desenvolvimento das capacidades humanas encarcerando as pessoas num estreito corredor de possibilidades que sevem para manter um sistema social desequilibrado e cruel. Um jogo de cartas marcadas onde a probabilidade de se completar como ser lhe é caro demais a qualquer um, um jogo de sobrevivência quase perdido. 
Aprender da arte do próprio tempo é estabelecer conexões que expandem nosso "universo incorporal" e nossos "territórios existenciais" (Felix Guattari, Caosmose, 1992). Mas temos que aprender tanto de sua experiência prática como da sua reflexão constante, como um exercício de vida que intensifica nosso sentir o mundo, viver a complexidade, enfrentar as contradições e desafios, expandir nossa humanidade. O conhecimento não basta, o mais importante é o que queremos fazer com ele. O que queremos se estende na nossa linguagem, se não conseguimos articular a linguagem não conseguimos nos expandir no mundo. Aprender a viver é um processo de criação de sentido na articulação da linguagem.  
A arte está na origem, na vertente da nossa humanização, o universo das nossas construções são projeções da nossa capacidade de articular a linguagem por meio das formas. Nossas formas de viver se originam na nossa capacidade artística de articular o sentido da vida. Somos seres essencialmente artistas. As sociedades constroem mitos, ritos e crenças que se manifestam de forma poética. Damos forma a nosso pensamento para poder compreender a complexidade da nossa vida, “condenada ao sentido”(Merleau Ponty, Fenomenologia da Percepção, 1967).

A arte contemporânea na escola é uma revolução de pensamento porque acompanha uma transformação cognitiva que requer novas formas de ensinar e aprender para enfrentar uma era de grandes desafios em que uma inteligência sensível e conectada ao fluido da vida será uma condição de sobrevivência. O mundo mudou e a escola se petrificou num sistema agora decadente. O paradigma cientificista hoje é insuficiente. Aprender da arte na sua expressão contemporânea se torna fundamental.